segunda-feira, 8 de março de 2010

*** Caso Adriano ***


Adriano deveria ter se apresentado para treinar, viajar, jogar. Não cumpriu nenhuma das três obrigações. Deve ser cobrado por isso. Essa é a parte pública da questão, que diz respeito aos jornalistas, ao torcedor, ao clube que paga seu salário, a qualquer um. Ponto. Quanto a isso me parece que não há qualquer discordância.

O diabo é o que vem a partir daí. Especulações sobre onde esteve, com quem, o que fez, a que horas, todas essas coisas que não dizem respeito a ninguém, salvo venha a ter algum desdobramento que desloque a questão para o âmbito público, tal e qual um registro de delegacia, de hospital, alguma denúncia comprovada.

Do contrário, essa é a parte privada da questão, que não diz respeito aos jornalistas, ao torcedor, ao clube que paga o seu salário, a qualquer um. Sei exatamente o tamanho da cumbuca onde estou metendo a mão quando entro nesse assunto, e mais ainda ao defender alguns pontos de vista como os que vem por aí e pretendo me aprofundar.
Porque por trás dessa onda na parte privada da questão existem outras questões muito mais obscuras e preocupantes.

Intolerância, falso moralismo, hipocrisia e o cada vez mais comum e aceito com normalidade, o jornalismo-manja, como humildemente batizei o jornalismo inescrupuloso que especula sem apurar, publica sem checar, aceita qualquer fragmento de informação como notícia, e pior, passa isso adiante como verdade absoluta. (para se ter uma ideia, de uma informação apenas, sabe-se lá de que fonte, várias reportagens, em vários veículos foram escritas sobre o episódio). Com um agravante dos tempos modernos: o jornalismo-manja agora se dá em duas etapas: a da reportagem e a do comentário. Haja manjada!

Voltaremos ainda aqui aos desdobramentos do caso Adriano, seus problemas, implicações, equívocos e consequencias. Por enquanto manjemos um pouco mais o jornalismo-manja. Há pouco tempo condenaram o atacante Fred porque ele estava pegando onda. A fonte do “crime” foi o relato de um barraqueiro da praia, sem fotografia, sem nada, que afirmou ter visto o tal “crime”. Virou manchete, afirmou-se e pronto.

Recuando um pouco, lembro com tristeza de ter visto alguns jornalistas que, muitas vezes ávidos por melhorar o status na empresa, ou mesmo por deformação de caráter, iam para a noite para ficar manjando a vida alheia. No dia seguinte, passavam o relato para algum manja-mor. Na dúvida entre rir ou chorar, sempre acabei rindo um pouco ao imaginar a cena e o diálogo: o sujeito saindo de casa e se despedindo da mulher:

- Amor, tou indo pro trabalho?
- Vai com Deus, amor, tá indo fazer o que hoje?
- Fica tranquila, não me espera pra dormir que hoje vou ter que manjar a noite toda!

Definitivamente, esse ofício pode ter algo de nobreza ou pode ser uma das coisas mais vergonhosas. Com tanta coisa pra fazer, tanta energia pra gastar na apuração de coisas relevantes, os cofres das entidades do nosso esporte se esvaziando e sendo subtraídos na calada da noite, e o sujeito sai de casa pra manjar...Com efeito! Nenhum pai cria um filho pra ele ser “manja”. Por essas e outras, agradeço muito olhar pro lado na nova trincheira e não ver nenhum adepto do jornalismo-manja.

As coisas pioraram demais nos últimos tempos. Nesse sentido, piorou a imprensa, piorou certamente o Brasil e a sociedade e piorou o mundo. E a tecnologia ainda agravou isso tudo, transformando tudo numa mega celebração da manjada.
Jogadores do passado cometiam as mesmas falhas, e nem por isso estavam no paredão de fuzilamento moral.

Vou escrever com calma e pausadamente para não haver confusão, insinuações de que estou comparando fulano e sicrano... Me apego apenas ao moralismo e a hipocrisias reinantes. Garrincha dava suas escapadas. Magistralmente Ruy Castro nos conta, como tantos outros contaram, de seus problemas com mulheres, suas questões extra-conjugais, seus graves problemas de alcoolismo que tão alto preço cobraram, suas fugas de concentração. E nem por isso alguém julgou o caráter de Garrincha, como não podia mesmo ser. Podemos dar quinhentos exemplos, mas vamos chegar um pouco mais para cá.

Em 1986, Renato Gaúcho e Leandro fugiram da concentração da Toca da Raposa perto já da Copa e tomaram uma senhora carraspana. Daquelas que, quando sobrevivemos, nos orgulhamos. O fim da história todos sabem, corte, pedido de desligamento em solidariedade, tudo isso às vésperas de uma Copa do Mundo. Fizeram falta ao Brasil certamente. Renato estava no auge e Leandro foi um monstro sagrado. Na minha modéstia opinião, o maior lateral direito da história do futebol brasileiro (e lá vou eu me metendo em outra confusão...). Erraram. Mas ninguém jamais julgou o caráter de nenhum dos dois. Pelo contrário. Prova de que o mundo nesse sentido piorou e ficou muito mais moralista e chato, é que, fosse hoje, estariam chamando-os de sem caráter, evocando o patriotismo, etc, etc...

Um quarto de século depois, uma saraivada de críticas que resvalam para o julgamento moral são desferidas em direção a Adriano. Irresponsável, sem caráter, leviano, moleque, além das outras que enveredam e acabam por revelar o preconceito social: favelado, bandido...

Tive breves contatos com Adriano. Sempre o melhor e mais educado possível. Mas juntando relatos e informações aqui e ali de quem convive mais e o conhece, chega-se a uma conclusão sobre o cidadão: assim como nos versos de Cazuza, assim como na própria vida do poeta, Adriano não pode “fazer mal nenhum a não ser a ele mesmo.” Outro ponto aqui, ponto final. Não é possível julgar moralmente quem só faz mal a ele mesmo. É possível sim tentar entender. Mais do que isso: é preciso tentar entender.

Para tentar entender, é preciso mergulhar um pouco em dois pontos:

A) Na história pessoal dele e de qualquer outro (são tantos...) que passaram e passam por isso no futebol.

B) É preciso mergulhar também um pouco no próprio futebol e suas engrenagens.

Quanto ao futebol a reflexão é mais rápida e simples: apesar de conviver desde sempre com meninos com histórias de vida como Adriano, o futebol e sua estrutura que suga a laranja e joga o bagaço fora não é preparado para lidar com sujeitos assim.

Na pressa do lucro rápido e do resultado, não dá pra parar e dar atenção para cada um, principalmente lá atrás, quando o futuro do menino é incerto.

Que não me falem nas estruturas de hoje dos clubes, das categorias de base com psicólogos, etc. Gosto da rua e da estrada nessa profissão, não sou de ficar no ar condicionado. Percorri um monte de buraco Brasil e mundo afora fazendo reportagem sobre categorias de base. Vi coisas parecidas com os piores reformatórios, Febens e Funabens da vida. Meninos como bois no abatedouro esperando sua hora. Mesmo nos clubes grandes e seleções de base vi coisas impressionantes.

Lembro de algo especialmente marcante em particular, acompanhando a seleção brasileira sub-17 no Mundial de 2005. Ouvi algumas vezes, em off, de gente da própria seleção que alguns meninos ali, (que depois virariam estrelas mundiais), eram insuportáveis, que só eram aturados ali porque jogavam muita bola e eram importantes pro time. Ou seja: dane-se o ser humano, enquanto fizerem gols está bom.

A convivência me apresentou esses mais problemáticos como meninos excelentes, bons de papo, carentes de saber das coisas, corações enormes. No hotel, reparei que todo dia muitos deles iam para o quarto da rouparia, e lá ficavam horas de resenha com o roupeiro e com o massagista. Um dia fui saber que romaria era aquela. Singelamente, os dois me contaram que os meninos iam ali desabafar, falar da vida, da família. Que se sentiam distantes dos psicólogos dos clubes, de seleção, porque eram muito diferente deles, e que os roupeiros e massagistas sim falavam a língua deles.

Sai dali com o projeto arquivado de fazer um documentário sobre roupeiros e massagistas (alô Trajano, Helvídio, Marcelão, Salim, depois da Copa conversamos!), as grandes e verdadeiras caixa-pretas do futebol. Resumindo: o futebol é absolutamente despreparado pra lidar com esses meninos. Sem falar dos empresários, sempre pensando mais na caixa registradora.

Quanto ao outro ponto, sobre a história pessoal de Adriano, o mergulho deve ser mais profundo: estamos falando, e não é novidade alguma, de meninos que saem do nada para o tudo. Como Adriano.

Aqui é preciso acima de tudo tentar se despir do olhar de alguém bem criado, bem nascido, com o olhar incapaz de entender como aquele outro vê as coisas, suas referências, de onde veio, os tapas que tomou da polícia na infância, as tantas vezes em que a vida disse não e que o dinheiro e as pessoas pisaram nele. Sem tentar ver com esse olhar, não será possível entender o outro. Não será possível entender Adriano.

Mais do que dinheiro, carências, estamos falando de um conceito que é o mais aterrador e definitivo de todos na formação de alguém de história como a de Adriano: a INVISIBILIDADE SOCIAL.

Pior do que não ter algo, pior do que qualquer carência, é não ser visto nem reconhecido pela sociedade. É não existir. No Brasil, o conceito foi extremamente bem desenvolvido e aprofundado pelo antropólogo Luís Eduardo Soares. Recomendo o documentário “Ônibus 174” (o DOC, não o filme), com sua desconstrução da história do menino Sandro até chegar a invisibilidade social de sua existência, que o conduziu aos atos extremos para avisar ao mundo que existia.

A invisibilidade social é o contrário da visibilidade social, obviamente. Você só existe se é visto. No caso de Adriano, a experiência é certamente muito mais intensa do que para qualquer um: em curto espaço de tempo, o invisível da favela passa a ser um dos seres mais visíveis do planeta. Pare e pense sobre isso antes do julgamento moral, vale a repetição para reflexão: o invisível da favela passa a ser um dos seres mais visíveis do planeta. Deve ser mais ou menos tão intenso e abrupto como entrar na sala de cirurgia com a cara do Tião Macalé e sair como Alain Delon.

Do sujeito que nada pode ao que tudo pode. Sinceramente, por muito menos, mesmo na minha profissão que mexe com a vaidade de alguns que não entendem o que está acontecendo e seu papel, já vi coisa bem pior. De muitos que adoram crucificar. Por muito menos.

Vale repetir o que comecei lá em cima: Adriano deve pagar sempre por tudo o que é visível e público em seus erros. Sem jamais ser julgado pelo que não é público, ou seja, pela cabecinha de alguns moralistas e hipócritas.

Para terminar, peço licença ao Márcio Guedes para entrar na área dele e recomendar dois documentários com personagens espetaculares: histórias bem parecidas na essência com a de Adriano. “Tyson”, de James Tobak, e “Maradona by Kusturica”, de Emir Kusturica. O trabalho dos diretores é diametralmente oposto. Em “Tyson”, o diretor aproveita o melhor de um personagem espetacular. Para quem não conhecia o personagem profundamente, como nós no Brasil, um sujeito extremamente inteligente, desnudado para uma câmera quase invisível. Espetacular. Ao acabar a sessão, o impacto é o mesmo de um soco de Tyson.

Já em “Maradona”, o diretor com seu ego imenso (se incluir no título já diz tudo) faz de tudo para destruir o filme, se incluindo a todo momento em uma trama onde não cabe outro personagem. Mas o personagem é tão grandioso e espetacular que o diretor não consegue estragar.

Em comum, o relato dos dois dando conta de vidas que fizeram essa ponte entre a absoluta invisibilidade social para a imensa visibilidade social. Impossível esquecer a cena do relato de Maradona, ainda hoje lutando para sobreviver a sua eterna tormenta. Entrando em campo, afirma com todas as letras: “só existo aqui no campo, só sou feliz aqui”. Foi ali no campo que deixou a invisibilidade, que conquistou o direito de ser visto. É fora dali que tem pânico de voltar a invisibilidade. Depois do filme, é fácil entender porque um sujeito como ele aceita arriscar toda a biografia voltando ao campo, agora como técnico. É preciso prolongar a visibilidade. O contrário dela é o tormento de sua vida que conhecemos.

Impossível esquecer os relatos de Tyson, das agruras da infância para os dias de glória. Um e outro jamais se recuperaram da mais abrupta travessia possível para um ser humano: a tal da absoluta invisibilidade social para a mais glamourosa visibilidade social. Como Adriano até aqui. Passar de Tião Macalé para Alain Delon em uma breve fração de tempo.

Atire a primeira pedra moral quem tem a certeza de que passaria por essa tsunami de emoções sem qualquer trauma ou risco.


MAL NENHUM (Cazuza)

Nunca viram ninguém triste?
Por que não me deixam em paz?
As guerras são tão tristes
E não tem nada demais
Me deixem, bicho acuado
Por um inimigo imaginário
Correndo atrás dos carros
Como um cachorro otário
Me deixem, ataque equivocado
Por um falso alarme
Quebrando objetos inúteis
Como quem leva uma topada
Me deixem amolar e esmurrar
A faca cega, cega da paixão
E dar tiros a esmo e ferir
O mesmo cego coração
Não escondam suas crianças
Nem chamem o síndico
Nem chamem a polícia
Nem chamem o hospício, não
Eu não posso causar mal nenhum
A não ser a mim mesmo
A não ser a mim mesmo
A não ser a mim

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